SECA GERAL
MUNICÍPIOS DO LESTE DE MINAS PASSAM POR PERÍODOS HISTÓRICOS DE SECA. A SITUAÇÃO VEM OCORRENDO NÃO APENAS AQUI, MAS EM TODO O MUNDO
GOVERNADOR VALADARES -
Cenários áridos e calor abundante. Talvez você esteja imaginando um deserto. No entanto, essa é a realidade vivida por muitas cidades do Leste de Minas, que vêm fazendo racionamento de água. Tem faltado água em Governador Valadares, assim como em outras cidades da região e do Brasil. O município de Mendes Pimentel, por exemplo há alguns meses já havia dado o grito. O mesmo vem ocorrendo em toda a região.
Só para se ter uma ideia, pela primeira vez na história a nascente do rio São Francisco, situada no Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, está completamente seca. O acontecimento é simbólico, mas não significa, necessariamente, que o curso do rio será interrompido mais adiante. A seca também fez com que vários municípios do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas decretassem estado de calamidade, mostrando que o problema não é apenas na região do Rio Doce, mas nacional, e até internacional. No Sul de Minas, região conhecida por ter o clima mais ameno e vários mananciais, a situação está tão crítica que foram descobertos em Poços de Caldas ligações clandestinas em várias nascentes.
O desespero é grande e não é por menos. Segundo especialistas, os meses de junho a agosto de 2014 foram os mais quentes já registrados no mundo, superando o ano de 1998, quando o forte fenômeno El Niño foi formado. Quais seriam as razões dessas mudanças climáticas? Que efeitos ela trará para a economia? O que pode ser feito para reverter essa situação?
Para responder a essas perguntas, o DIÁRIO DO RIO DOCE procurou especialistas no assunto. Segundo o engenheiro e geólogo Gilson Essenfelder, a temperatura global tem aumentado devido ao acúmulo de CO2 na atmosfera, o que causa o efeito estufa, ou seja, parcelas maiores da energia solar se acumulam na atmosfera, esquentando o planeta. Ele explica que existe correlação entre o desmatamento em uma região e os efeitos em outra. Esse fenômeno é conhecido por muitos como efeito borboleta.
“A floresta amazônica libera bilhões de litros de água por dia — 1.000 litros por árvore — que, na atmosfera, em forma de nuvens, descem contornando os Andes para o Sul do Brasil, formando as chuvas em São Paulo, Minas e outros estados. Com a derrubada da floresta amazônica, esse mecanismo passa a falhar, e as chuvas no Sul diminuem. Localmente, em Governador Valadares, acho que as queimadas que afligem a região há mais de 50 anos destruíram a vegetação, impedindo a infiltração de água da chuva no solo, o que faz com que os lençóis freáticos não se recomponham, o que causa a secagem dos córregos, a diminuição do nível dos rios, e outros problemas”, explica.
Segundo parecer divulgado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que até 2050 mais de 45% da população mundial não terá acesso à água potável. Para reverter esse cenário, segundo o Comitê, “é preciso muito trabalho, que vai desde a conscientização acerca do desperdício até a necessidade de grandes obras estruturais para minimizar o impacto do desenvolvimento no meio ambiente e, desse modo, possibilitar a recuperação das bacias hidrográficas brasileiras como um todo”.
Segundo Essenfelder, também é preciso proibir as queimadas em nível nacional, “através de uma legislação severa, capaz de pôr na cadeia por anos o incendiário preso em flagrante”. “Considerando o dano causado por uma queimada, com a morte de milhões, talvez bilhões de seres vivos, nada mais justo. As consequências são bem conhecidas: secas anormais, perda da fertilidade do solo, extinção da fauna e da flora, aumento do efeito estufa com o CO2 produzido pelo fogo, êxodo rural, e outros problemas”, afirma.
Pesquisador já havia alertado sobre a seca
A visão atual do Vale do Rio Doce é bem diferente da descrita pelo pesquisador inglês William John Steains, que passou pela região entre junho de 1885 e janeiro de 1886 — bem antes da emancipação política de Valadares, em 1938. “O grande encanto dessa região do Brasil está nas imensas florestas virgens que cobrem, com grandiosidade sem par, quase toda a totalidade da área banhada pelo rio Doce, e durante a maior parte do seu curso, essas belas florestas, abundantes em uma centena de espécies da melhor madeira, chegam até a beira d’água, formando uma muralha quase impenetrável da vegetação tropical mais esplendidamente natural que possa ser imaginada. [...] Não resta dúvida de que a futura riqueza dessa região do Brasil está na imensa reserva de valiosas madeiras [tanto medicinais como outras] que suas matas virgens contêm”.
Estas palavras de Steains foram registradas na obra “Valle do Rio Doce”, publicada na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, em 1888. Na lista de árvores citadas por Steains haviam jacarandá, bicuíba, ipês, maçaranduba, peroba, vinhático, pau-brasil, angico, sapucaia e várias outras que hoje são raridade.
Por isso, o engenheiro-agrônomo, pesquisador e professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Alexandre Sylvio, que coordenou o curso de agronomia da Univale por muitos anos, já havia alertado que a região está se desertificando, por causa do desmatamento. Em artigo intitulado “As Águas”, publicado no DIÁRIO DO RIO DOCE no dia 22 de março de 2009, Alexandre alertou que faltaria água no mundo, fato que já estamos vivenciando hoje. “A interferência que o homem está promovendo no ciclo [da água] está desencadeando grandes transtornos ambientais, como a redução das chuvas, do volume de água dos rios e a desertificação de várias regiões do planeta, fato que já podemos observar em alguns locais de Minas Gerais e do Brasil. A agricultura e a pecuária são fundamentais para alimentar a nação e desenvolver o País, mas, sem o seu manejo associado à conservação do meio ambiente, em breve sentiremos estas mudanças climáticas de forma mais intensa e destruidora”.
No artigo, Alexandre explicou que a interferência no ciclo tem ocorrido devido aos danos causados à natureza como um todo. “Os solos das matas e florestas são muito porosos, devido às raízes das árvores, e permitem que a água se infiltre até atingir as camadas de rochas profundas. Essa água subterrânea cria uma região rica desse precioso líquido chamada de lençol freático. É principalmente o lençol freático que alimenta as nascentes que formam riachos e rios de água pura e cristalina. A grande maioria dessas nascentes permanece brotando água mesmo no período seco. Isso ocorre porque o solo é uma grande caixa capaz de armazenar bilhões de litros de água das chuvas e liberar lentamente, através das nascentes, inclusive nos períodos de seca. Mas, com o tempo, o bicho homem chega, iniciando o processo de degradação. As matas são derrubadas para a implantação de lavouras e pastagens; os solos são revolvidos por máquinas e implementos, adubados, aplicados agrotóxicos, etc. Com o passar dos dias, toda aquela estrutura do solo é perdida. O uso de máquinas e implementos forma no solo uma estrutura compactada chamada ‘pé de grade’, que não permite a infiltração da água. Se a água se infiltra menos, então ela escorre mais pela superfície, causando erosões, assoreando os rios e aumentando a frequência das enchentes. Como o lençol freático recebe uma quantidade menor de água, o reservatório do solo fica baixo e as nascentes secam, principalmente nos períodos de seca, época em que as pessoas mais necessitam de água. A conservação do ambiente é fundamental para a manutenção do ciclo das águas no planeta”, afirmou.
Agropecuária é afetada e produtos
são inflacionados com estiagem
Além de afetar as populações urbanas, a falta de chuva também representa uma ameaça à agropecuária. Segundo o engenheiro-agrônomo e professor do curso de gestão ambiental da Unipac-GV Marcelo de Aquino Brito Lima, as mudanças no clima já têm afetado o setor no Brasil. “As mudanças climáticas afetam diretamente o setor agropecuário. A falta de chuvas ou o excesso delas prejudica muito tanto a agricultura como o setor pecuário. Afeta a produção em si e também a questão da logística [estradas] para escoamento da produção.”
Segundo Aquino, a tendência é que os preços fiquem ainda mais altos se os períodos de seca continuarem tão intensos. “Com a falta de chuvas, falta capim no pasto e o pecuarista precisará investir em ração animal, dentre outros implementos, deixando a produção de leite e carne geralmente mais caros. Na agricultura, a falta de chuvas também acarreta grandes prejuízos, principalmente para os agricultores que não possuem irrigação na propriedade, pois a demanda de água para a produção agrícola é muito grande. A dificuldade para produzir no campo vai se refletir no preço para o consumidor final. O produtor rural em nossa região vem sofrendo muito para produzir, principalmente pela falta de uso de tecnologias importantes no campo, como: a adubação de pastagens, pastejo rotacionado, produção de silagem dentre outras”, explica.
Segundo Aquino, o maior problema, atualmente, é que com as alterações climáticas a chuva tem caído de uma só vez, e não constantemente, como deveria. “Nosso planeta vem sofrendo grandes alterações climáticas [naturais] desde sua formação. Ele se aqueceu e esfriou-se naturalmente em sua trajetória. A questão antrópica [alteração no clima/ambiente através do homem] teve início com a descoberta do fogo e vem influenciando desde então o clima no planeta. A questão ‘aquecimento global’ é muito controversa. Alguns cientistas acreditam em um aquecimento causado pelo homem [poluição, desmatamento, utilização desenfreada dos recursos naturais, etc.] e outros acreditam que o clima está apenas se modificando naturalmente, como sempre aconteceu. O fato é que neste momento estamos passando na região pelo processo de desertificação, e a questão da mudança no ciclo das chuvas está preocupando a todos. Segundo estudos recentes, a quantidade de água das chuvas é a mesma anualmente, porém, onde tínhamos uma frequência de chuvas em um período maior, ela está se concentrando em um curto período, causando enormes desastres, como enchentes e destruição em massa. O fato é que a sociedade em geral precisa compreender que as modificações no clima devem ser uma preocupação de todos, pois a todos está afetando”, disse.
Aquino destaca que, para a situação mudar, ou pelo menos melhorar, é necessário mais ação política, tanto no Brasil como em outros países. “Precisamos de políticas que se preocupem com a sustentabilidade e a preservação ambiental tanto no ambiente natural como no construído [cidades]. A educação ambiental terá papel fundamental para o futuro, principalmente a educação de crianças e jovens. Medidas urgentes precisam ser tomadas para que possamos contornar a situação que vivemos na atualidade”, conclui.
Uso racional na agricultura
Segundo dados relativos à bacia do rio Doce, em algumas regiões, como no interior do Espírito Santo, já começaram a surgir conflitos pelo uso da água, decorrentes de sua escassez. E uma das atividades econômicas que mais sofrem com a falta de água é a agricultura. Em atenção a esse problema, o Plano Integrado de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Doce (PIRH-Doce) conta com um projeto que estimula o Uso Racional da Água na Agricultura, idealizado para diminuir o impacto das demandas de irrigação sobre as vazões dos rios, sobretudo onde o balanço hídrico já é considerado desfavorável.
O programa, que será implementado em seis Comitês de Bacias dos rios afluentes, em Minas Gerais e no Espírito Santo, é desenvolvido pelo Ibio AGB-Doce (entidade equiparada e delegatária de funções de Agência de Água da Bacia do Rio Doce). A proposta é aliar à irrigação tecnologias modernas e processos de conservação da água, sem danos à produção agrícola e ainda com redução de custos.
Em 2013, após processo de licitação, o Ibio-AGB Doce contratou a Fundação Arthur Bernardes (Funarbe), empresa vinculada à Universidade Federal de Viçosa (UFV), que desenvolveu o irrigâmetro. Constituído de um evaporímetro e um pluviômetro, o aparelho determina com precisão a necessidade de irrigação e a quantidade de água ideal a cada lavoura. Sua inovação consiste na fácil utilização, uma vez que não requer operações matemáticas, como outros dispositivos com a mesma função.
No ano passado, foram instalados aproximadamente 80 irrigâmetros, sem qualquer ônus para os produtores, sendo já atendidas 36 propriedades nas bacias do rio Guandu (ES) e 37 na bacia do rio Caratinga (MG), conforme indicação dos respectivos Comitês de Bacia. Os recursos investidos também são provenientes da cobrança pelo uso da água na macrobacia do rio Doce.
A expectativa é de que, até 2015, 240 propriedades rurais receberão a nova tecnologia. Este ano, devem ser contempladas 40 na bacia do rio Manhuaçu (MG) e 40 na bacia do rio Santa Maria do Doce (ES), e no próximo, 40 na bacia do rio Suaçuí (MG) e 40 na bacia do rio São José (ES). O Programa de Incentivo ao Uso Racional da Água na Agricultura inclui, ainda, estudos e diagnósticos sobre captação e condução da água, sistemas de irrigação e potencial de poluição por insumos agrícolas, entre outras ações.
Saneamento é essencial
Segundo a Associação Mineira de Municípios, 90% das cidades do Estado não possuem o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB), que, com a Lei 11.445, de 2007, passou a ser exigido para que os municípios possam pleitear recursos federais para fins de saneamento básico. Uma das razões para a não existência do plano é a falta de verba destinada à sua elaboração.
Em toda a bacia do rio Doce, 57 cidades já iniciaram a elaboração dos planos, num total de mais de R$ 9 milhões investidos. A expectativa é de que 155 municípios, pertencentes às bacias dos rios Piranga, Piracicaba, Santo Antônio, Suaçuí, Caratinga, Manhuaçu, Guandu e São José, sejam contemplados pelo Programa de Universalização do Saneamento.
Os Planos Municipais de Saneamento Básico estabelecem as diretrizes para os projetos de saneamento básico necessários às cidades, contemplando quatro eixos: abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos urbanos (lixo) e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. A seleção e a hierarquização dos municípios a serem contemplados foram feitas conforme edital de chamamento público, em processo coordenado pelos Comitês, que realizaram um grande trabalho de mobilização junto aos gestores municipais.
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